domingo, agosto 29, 2004

o cheiro a maresia que me enche a alma



A onda

Era uma onda que crescera para lá do meio do mar
e mais se alçava em corpulência das ondas que tragava
pelo caminho. Era uma onda ávida.
Com ela rolavam búzios alucinados, estilhaços de
conchas, madeiros, plâncton, algas, o último alento dos
afogados... Era uma onda violenta.
A exaltação que trazia dos confins do horizonte nem
lhe dera para se interrogar sobre qual o desígnio do seu
destino. Era uma onda embriagada de vida.
Desfraldada em cachão, cavalgava para terra. A rojar-se
sobre os primeiros bancos de areia, esboçou enfim a
pergunta:
- Porquê?
Mas já não teve tempo de responder.


António Torrado
in Cinco sentidos e outros 1997

a força da noite envolve mistérios



Como uma flor vermelha

À sua passagem a noite é vermelha,
E a vida que temos parece
Exausta, inútil, alheia.

Ninguém sabe onde vai nem donde vem,
Mas o eco dos seus passos
Enche o ar de caminhos e de espaços
E acorda as ruas mortas.

Então o mistério das coisas estremece
E o desconhecido cresce
Como uma flor vermelha.


Sophia de Mello Breyner Andresen

sábado, agosto 28, 2004

gestos e palavras a fluir pela vida



Fixei imagens numa lua artificial
escondi a tristeza no corpo em segredo

senti um olhar ferido partindo na escuridão da noite
num sentimento de procura
na penumbra de um desejo

fiquei ali presa naquele mundo de mistérios,
mergulhada em insónias e sonhos obscuros

enxuguei as lágrimas,
ignorei a melancolia da vida
guardei uma imagem
a imagem do teu rosto

guardei os desejos,
as promessas viciadas de palavras quentes
os sonhos

guardei a vontade das noites passadas junto ao mar
o desgaste de um amor que escureceu como a noite

então anoiteceu e num vago olhar
o vento levou um nome,
o teu e nada mais restou

onda

quinta-feira, agosto 26, 2004

Perdesse para lá do tempo o caminho que pisamos



na poeira dos sonhos
longe do mundo

sem mexer
num desfilar de imagens

os corpos perdem-se
e descobrem outros rostos

loucuras que caminham em medos
em lixos mágicos de memória

onde a vida deu mil voltas
sem se deixar contornar

fogem os corpos fluidos
em direcções opostas
separando-se ao amanhecer.

onda

sábado, agosto 14, 2004

palavras escritas à solta

um soltar de palavras no irc deu isto que achei interessante registar, num tempo que passava à solta



@Nao_Suporto> Eu e os meus segundos...
@Nao_Suporto> perco-me nestes segundos que acabam por ter conotação de horas e na realidade até são.
@onda_verde> minutos mutiplicados
@onda_verde> em segundos dividos
@onda_verde> onde as horas fazem o dia
@Nao_Suporto> e os dias sabem a eternidade
@onda_verde> que se estende na vida
@Nao_Suporto> no ser...
@Nao_Suporto> na essência...
@onda_verde> do tempo
@onda_verde> alastrado pela sombra
@onda_verde> contaminada
@onda_verde> onde é soberano o silêncio
@Nao_Suporto> vejo som sem som
@Nao_Suporto> seres sem ser...
@Nao_Suporto> palavras sem letras
@onda_verde> brancas e vazias
@onda_verde> fixadas na pintura
@onda_verde> do rumor
@onda_verde> demolidas da origem
@Nao_Suporto> parasitas da essência
@onda_verde> incoerentes na razão
@onda_verde> calcinadas
@onda_verde> pela sede de viver

domingo, agosto 08, 2004

O Esconderijo do Homem Triste
Não sei o que me aconteceu para ficar tão triste.
Lembro-me de ter percorrido meio mundo à procura de imagens.
Tinham-me dito: é no movimento incessante de quem viaja que encontrarás
a imobilidade que desejas.

Mas eu não sabia para onde ir. Deambulei anos a fio, e nunca encontrei as imagens
que queria. Gastei as parcas forças que tinha neste trabalho,
até que um dia me perdi junto ao mar.

Resolvi construir, ali mesmo, uma casa.

Tencionava não sair mais daquele lugar onde me perdera. Imobilizar-me,
viver e envelhecer dentro de quatro paredes nuas erguidas pelas minhas mãos.
Morrer frente ao mar, sozinho, como num romance que lera havia anos.
Esperar que a casa se esboroasse e me servisse, por fim, de túmulo.

Assim não aconteceu. Algum tempo depois, a casa transformou-se subitamente
em prisão. E talvez tenha sido isso que me pôs, assim, triste para sempre.
Custava-me a crer que aquilo que eu próprio construíra acabasse de me atraiçoar.

Assustei-me e fugi nessa mesma noite. Ignoro o que se passou com a casa.
Não sei se ainda existe... o que sei é que a meio daquela fuga desesperada
ocorreu-me o que me levaria, enfim, a encontrar o esconderijo para a minha
imobilidade.

É desse lugar iluminado que, hoje, vos falo.

Fui ter com um fotógrafo meu amigo e pedi-lhe para me retratar.
Ele acendeu um foco de luz. Sentei-me no centro dele.
A máquina disparou sem cessar.

Gesticulei, abri os braços, mexi-me muito - como se soubesse
que nunca mais o voltaria a fazer.

Quando o meu amigo mergulhou o papel fotográfico no revelador,
eu também mergulhei. Mas devo ter desmaiado uns segundos, talvez minutos,
porque ao retomar consciência senti as pernas e os braços dormentes
- e todo o meu corpo estava mole.

Um véu de luz toldou-me a visão. Ceguei por instantes, mas não foi
uma sensação desagradável. Depois, o corpo começou a ondear,
a impregnar-se no papel e a coincidir com o retrato que o meu amigo fizera de mim.

Segundos mais tarde uma pinça metálica tirava-me do revelador. Senti, então,
a frescura da água - e toda a superfície da folha de papel, o meu novo corpo,
brilhou. Em seguida deixei-me entorpecer na temperatura tépida,
voluptuosa, do fixador.

Tinha encontrado o esconderijo.

E aqui estou, diante de quem me visita e olha. Apesar de não ter deixado de ser
um homem triste, adquiri a vantagem de estar sentado, e de já não precisar
de fugir ou desejar seja o que for.

Mas o pior momento do dia é aquele em que nos separamos. Não consigo dormir.
Fico noite fora com a minha solidão - e quem esteve a ver-me parte
com o susto de continuar a existir.

Nenhum de nós é capaz de murmurar: fica comigo e toca-me. E a noite cai,
de certeza, mais escura para quem parte.

Eu sou apenas a imagem do que fui. Não sinto nada.

Certa vez, um homem e uma mulher pararam diante de mim. Olharam-me muito tempo.

Aproximaram-se, afastaram-se, voltaram a aproximar-se do vidro que me protege. O nariz da mulher quase me tocou nos joelhos.

De repente, a mulher inclinou a cabeça, sobressaltou-se e disse:

- Zé, perdi o vidro do relógio.

O homem baixou-se e procurou-o. Quando o encontrou, deu-lho. Mas ela argumentou:

- A culpa foi tua. Eu não queria vir aqui.

O homem, muito sério, respondeu-lhe.

- Francamente, Fátima, não te toquei no pulso. Não mexi no tempo. Nunca mexo no tempo...

Outras vezes, quando não está ninguém olhar para mim, ponho-me a cismar:

A luz é o meu túmulo.

Em tempos, os meus gestos tiveram o rigor da abelha que rouba o pólen à flor.
Com esses gestos quis construir um espaço para o silêncio. Uma morada
onde fosse possível ignorar o mundo, ou esquecê-lo.

De vez em quando, aceito ainda o mistério das palavras que me cercam
e não coincidem, em nada, com a realidade. Eu só quis celebrar a vida.
Encontrar o esconderijo onde fosse possível um derradeiro acto de paixão.
O esconderijo onde pudesse, de novo, tocar teu rosto
e recusar a aridez da calúnia.

Mas a luz é o meu túmulo.

A pouco e pouco incendiaram-se os negros profundos, o círculo luminoso
aprisionou-me, e as mãos gesticularam sem sentido. O interior das paisagens
guardou a tua ausência. E numa última visão a madrugada
irrompeu do mar adormecido.

As mãos abriram-se novamente,
quando o dia começou a devorar a nudez do corpo.

Comovido, perdi a voz.

Não podia chamar-te, lembro-me, por isso desatei a escrever o teu nome
nas paredes da cidade. Tempo perdido. Já não podias ouvir-me nem ler-me.
Foi quando desejei, com ardor, este esconderijo.

Aqui, pelo menos, respiro ar condicionado, e um foco de luz
simula a eternidade dos dias.

Não há emoções, nem palavras ditas em voz alta. Não acontece nada,
nem se ouve respiração alguma.

Quem me visita diz coisas fantásticas a meu respeito. Nunca confirmo
nem desminto. Limito-me a ouvir e calo-me. Porque há coisas que devem correr com o tempo e, mais tarde ou mais cedo, nele se apagam.

É claro que também há coisas guardadas na minha memória de papel.
Mas essas, já não tenho a certeza de que alguém as tenha dito
ou eu as tenha, de facto, ouvido.

Por vezes ponho-me a sorrir, mas ninguém consegue ver que sorrio,
porque o retrato que me esconde - como eu - está morto e desfocado.

E a luz é o nosso túmulo.


Al Berto

sexta-feira, agosto 06, 2004

por extenso entendeu dobrar o destino e enebriar sem limites e desvios





Um beijo por extenso



achei e gravei-o por extenso
aqui bem perto
um beijo sem condição
expendi-o no teu regaço
para te olhar
nos olhos bem no fundo
entrar na tua alma
e nela sentir o conforto
sentir um desejo
de o levares
ser único e inebriar-te
com um encanto que te seduzisse
por extenso
e em transparência
aquecido ao rubro
por seres parte
de um pensamento inusitado
numa hipótese amarrotada

onda

quinta-feira, agosto 05, 2004

fio na face, fluxo doce de uma onda do mar



(F.)


Lá saiu, F outra vez.
Desta feita foi dizendo
que ia comprar rebuçados.
O ponto de partida
teria de assentar
no plano vago
que também incluía uma ponte
até ao porto de chegada.
Evidentemente que entre
um maravilhoso isto
e um sensacional aquilo
se perde muitas vezes,
e muito incrivelmente,
uma belíssima continuidade,
o fio da meada, quejandos,
vice-versas respectivos ou não.
Seja como for, desta vez,
foi outra vez em que F
saiu falando à toa.
A solidão em si mesma
é o estado menos solitário
que se pode conceber
já que, a seu tempo,
ela está com todos
e cada um de nós.
As insónias têm nomes
desencontrados
e alheios aos sonhos;
têm a essência triste
das ideias extraviadas
na rota dos ventos;
e tudo isto acontece
nos meandros
da própria mente.
... A ver de rebuçados
como F disse, ao sair,
mas queria, algo mais,
como a transparência
abrupta de um vento
etilizado em cristal;
julgava inexpugnáveis,
todos os acessos
à ideia de infinidade
num reflexo de um copo.
Lá saiu... de vez
e atrás de si
todas as deixas de uma vida
não importavam mais
que... ... ... rebuçados.


_________________LuMe
Luis Melo

mar





Em frente ao oceano
venho desvendar a fantasia
como que num deambular
entre ocasos intemporais
e simulacros de acasos.
Confronto-me com o oceano
embarcando no seu transe.
Na minha mente
evolui uma monção geminada
que resulta no dual sentido
de estar atento e alienado.
Se a brisa me afaga o rosto
se as algas me cobrem os pés
não deixo eu de ser a brisa
nem hesito em viver na alga
ou em divagar pela melodia
deste Todo que se retém
sem nunca se repetir.
Em frente do mar
embriago-me em gradações
do original, pelo absurdo,
até ao absoluto reavivar
em cada grão de areia
uma réstia de eternidade
uma abstracção débil
com um gosto salgado
de um oceano interior.
Sou dele a taça
as margens, o leito;
sou um verso vivo
na poesia dos meus avós;
sou a veia conducente
ao coração da terra-mãe
ao meu ventre de viver
e de um dia morrer.
Algures, a ponte
como uma dádiva perene;
um salvo-conduto à passagem
da fantasia para o sonho
na bruma tranquila
entre duas madrugadas.
Ocasionalmente,
a candura do afago
de um fiozinho de sol
que desencadeia delírios
nas linhas de força
do cristal, feito de mim,
em frente ao mar.
...E a minha alma nua
a reinventar o salgado
e a maresia numa lágrima.

_________________LuMe
Luis Melo

a noite transforma as palavras



Derrubei o olhar nos mistérios do tempo
contornei a ilha da verdade,
mergulhei embriagada na tortura da noite
com os olhos saboreio adormecida,
o reflexo de um rosto
nas paredes descubro o mistério das mãos
em sombras cruzadas e finas.


Sinto o mar
em rostos cansados de sofrer,
cigarros que ardem em dedos duros e queimados
felicidade com defeito dilacerado,
amor inacessível,
construído em labirintos
palavras sem valor manchadas e vazias
vozes tremulas gastas de desanimo.


Uno as mãos
um gemido adormece comigo


onda

segunda-feira, agosto 02, 2004

com a pélala branca do malmequer amarelo pintei o dia




veio o dia sem idade
que arrasa sem cor
os movimentos dos dedos

da janela
uma estrela na profunda escuridão

o frio trai
sorvido nas sombras

espírito
alma
misturados no sal da vida

sopro árido
rumor de marés invisíveis

um mar terno e doce
embriagado de mistérios

branco, nobre
realçando sentimentos

o cheiro que sinto
num
desejo de amar


onda

  o teu sorriso no esplendor de uma suave explosão chega a mim o teu sorriso. aflui com emoção e calor, como sonhos mesclados nos en...